Opinião

Sobre religião e guerras santas

Por Eduardo Ritter
Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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Alguns anos atrás eu tive um vizinho precoce. Do alto de seus dez anos, ele contou que havia desistido da catequese, na escola, pois para tudo que ele perguntava o professor dizia que não era para questionar, mas sim, para acreditar. "Foi demais pra mim!", concluiu antes de convencer a frustrada e religiosa mãe de que ele nunca acreditaria naquela ficção mágica e cruel que queriam lhe enfiar goela abaixo. "Mais fácil acreditar que o Papai Noel entra na chaminé em pleno verão de 40 graus e que um coelho entrega ovos de chocolate do que em histórias em que um sujeito constrói uma arca e enche de bichos ou que um senhor abre o mar para um monte de gente passar por lá de boas", concluiu. Esperto, o guri. Mais sensato que muito adulto.

Lembrei do moleque ao pegar para reler o livro "Jerusalém", do jornalista gaúcho Airton Ortiz. Mesclando bom humor, ceticismo e história com as suas próprias andanças por Israel mais de uma década atrás, ele traz vários pontos que podem ser considerados atuais sobre a região tanto hoje, do alto do confronto entre Hamas e Israel, quanto há 500, mil ou cinco mil anos. Inclusive, quando retoma a história contada pela própria bíblia, ele reflete sobre o progresso que a humanidade teria tido em tão poucos séculos após a criação do planeta em sete míseros dias, até que conclui: "Tudo, tudo ali, à mão de semear. Faltavam as guerras. Que teriam início com o surgimento das religiões". Na mosca. O Deus bíblico, inclusive, que teria criado o bicho homem, passa tomando partido aqui e ali, ajudando um povo a massacrar o outro. E é esse apoio divino que ambos, israelenses e palestinos, acreditam ter para ficar com a terra santa. Mas, como explica Ortiz, tudo é muito antigo, pois a partir da religião, "um sujeito mais esperto passou a comandar os outros". E que melhor argumento para manter tal comando do que criar uma epopeia dizendo que um ser superior diz que um povo está certo e merece a glória, enquanto outro está errado e merece ser castigado?

Pela logística religiosa, essa outra reflexão de Ortiz serve de guia e de argumento para os ataques que ocorrem nos dois lados da Faixa de Gaza. "Deus não se compadecia das minorias. Punia todos, justos e injustos, e cometia algumas injustiças. Até porque daria trabalho, mesmo para Deus, descobrir em meio àquele povaréu quem duvidara do Sagrado. Mas no atacado Deus acertava. Naquela época era assim mesmo", conclui ironicamente.

Um pouco mais adiante, Ortiz lembra do Acordo de Oslo, assinado pelos líderes israelense e palestino em 1993, e que tinha como lema "Terra por Paz", ressaltando que a paz foi a única coisa seguiu sem acontecer na região. Como disse no início, em uma linguagem simples, mesclando informações, experiências e dados históricos, Ortiz ajuda o leitor de hoje a entender o confronto que está acontecendo no Oriente Médio, pois ele é mais antigo que as barbas do profeta.

Inclusive, para o leitor do século 21 entender, o autor sintetiza tudo em um único parágrafo: "O povo árabe, por ser descendente do primogênito de Abraão, se considera o legítimo herdeiro da aliança feita com Deus e que os descendentes de Isaac corromperam esse pacto. No fundo, o atrito entre árabes e judeus é mais uma dessas disputas familiares por polpuda herança". Eu acrescentaria que é uma daquelas brigas em que ninguém abre mão de um minguinho de terra. Tudo em nome de Deus. Afinal, tanto lá quanto cá, sempre tem os espertinhos querendo levar a melhor dizendo que são amigos das divindades. Truque velho, mas que sempre funciona.

Um bom final de semana a todos e todas.

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